Retravo
- Bruna Lopes

- 24 de mar.
- 2 min de leitura
A terra cede sob o peso do tempo, exalando o perfume adormecido de raízes e promessas. O frio cedeu, enfim, e tudo pulsa com a febril urgência de quem sobreviveu. Desperto. Não sei por quanto tempo dormi, mas o silêncio que me envolvia já não é o mesmo. Há algo de distinto na luz, uma brandura dourada que atravessa as copas das árvores e desenha nas sombras novas formas.
Respiro fundo e o ar traz-me vestígios do que mudou, a humidade da terra revirada, o cítrico das folhas que se estiram pela primeira vez, a doçura das pétalas recém abertas. Tudo tem um cheiro de recomeço. O vento traz-me o murmúrio do rio, o estalar da madeira velha a ceder espaço à nova vida, o rumor da seiva a despertar nas entranhas das árvores. Sinto esse retravo no corpo, como um segundo coração a pulsar sob a pele.
Avanço pelo bosque que conheço como a minha própria respiração. Mas há algo de estranho, algo fora de lugar. A terra foi marcada por rastos que não reconheço, sulcos fundidos no barro como cicatrizes abertas à força. Árvores caídas sem a graça do tempo a dobrá-las, mas arrancadas à violência de mãos impacientes. O cheiro a queimado, mesmo depois das chuvas, denuncia a brutalidade.
Eles passaram por aqui.
Os homens nunca souberam esperar. Para eles, a primavera não é um retorno, mas uma tomada. Rasgam a terra como se pudessem possuí-la, impõem nela a sua pressa, ignorando os ritmos antigos, a delicada dança entre o que dorme e o que floresce. Mas a Natureza não lhes pertence. Nunca pertenceu. Ela observa, silenciosa e eterna, enquanto os seus filhos mais impacientes constroem ruínas onde poderiam crescer florestas. Eles podem esquecer-se que toda a ação tem consequência, mas a Natureza não. A deusa pode não castigá-los mas guarda as lembranças de toda a violência e egoísmo, e no fim, quando a carne voltar ao pó e os homens recordarem que também estão subjugados às leis da velha mãe, todas estas maldades vão lhes ser cobradas.
Já eu, pertenço-lhe. E tenho consciência que sempre pertenci. O meu corpo obedece às estações, ao chamamento do frio e ao sussurro do calor. O inverno ensinou-me que é preciso ceder ao sono para renascer. Agora, o mundo abre-se diante de mim como um ventre fértil, chamando-me de volta à luz.
E então caminho. O musgo acolhe-me debaixo das patas, as pedras guardam a memória de cada pegada. Sei que este ciclo não se interrompe, que cada estação traz consigo o fardo e o alívio da Natureza. E a vida resiste, apesar da pressa dos homens, apesar das marcas que deixam para trás.
E, no fim, sei também que a primavera voltará sempre para me encontrar. Pois, afinal, sou apenas um urso que desperta para mais uma volta deste grande ciclo.






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