Vivo como se a saudade tivesse pressa
- Matilde

- 9 de nov.
- 2 min de leitura
As palavras mais abstratas são contraditórias. É peculiaridade sua: apesar de designarem conceitos concretos, por serem abstratas, podem originar redes de significados novos, completamente distintos.
Vejamos o caso da palavra infinito. Que sinónimos para o infinito? Como o que não acaba, pode utilizar-se infindável ou ilimitado; como referência temporal, utiliza-se eterno e perpétuo; como o que não se mede, incalculável. Enquanto substantivo, pode significar o absoluto. E, enquanto metáfora, pode ser o universo. É contraditório… ao mesmo tempo que infinito tem um significado muito próprio, está envolto numa nuvem mística de significados consoante o contexto em que se aplica.
Com isto, quero dizer que as palavras que descrevem entidades abstratas facilmente concretizam as mais diversas metáforas (o infinito como o céu, a morte como o fim). Além disso, têm também o papel de significar aquilo que se propõem significar objetivamente: as tais entidades abstratas.
No entanto, o nosso nobel da literatura inventou no seu livro “As intermitências da morte” uma outra dimensão para estas palavras: personificou-as, fazendo da morte uma pessoa que se apaixona. Morte, palavra com poucos sinónimos (falecimento, óbito) e com potencial para muitas metáforas (fim, vazio), é também o nome da mulher que, certa noite, se produziu para ir ver o concerto do violoncelista em quem tinha interesse.
Neste contexto, a frase de inspiração “Vivo como se a saudade tivesse pressa” faz-me imaginar a saudade como uma senhora cheia de pressa. Imaginem também. Para mim, é uma mulher nos seus trintas, com uma vida de tal modo preenchida que anda sempre apressada. Imagino-a a correr, em parques como o da Asprela, a consultar no seu smartwatch os quilómetros que percorreu e as horas. Depois, chegaria a casa por volta das seis e meia, já suficientemente atrasada para o trabalho.
No livro de Saramago, a morte, deixando as suas responsabilidades profissionais de lado para aproveitar o amor, faz falta a quem dela dependia. As famílias, os hospitais, as fronteiras, tudo um caos à espera da morte. Chegou mesmo a fazer falta a ela própria (!), ao aperceber-se de que o valor dos que amamos também está associado ao seu fim.
E a saudade? Que falta nos faria a saudade se deixássemos de a sentir? Ou o que aconteceria se a saudade se apressasse a aparecer nas nossas vidas?
Bom, é inegável que a saudade tem um papel relevante nas relações. Acho que se associa ao futuro, na gestão das expectativas que temos uns sobre os outros, mas também ao passado, na medida em que se envolve com a nostalgia dos momentos e das pessoas já vividas. Faz falta fazermos falta uns aos outros, porque significa que nós valorizamos, que esperamos algo das nossas relações. Que lhes vemos futuro. Por isto, é de desejar que a saudade esteja a horas.
Gostaria de concluir com o desabafo de que esta frase de inspiração me partiu a cabeça até fazer dela um texto. Foi difícil criar-lhe um sentido novo. Ainda assim, espero ter suscitado reflexões sobre a importância da saudade nas relações humanas ou sobre a personificação de entidades abstratas.
Ah! E tenhamos cuidado se virmos a morte e a saudade juntas… ainda podemos morrer de saudades!






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